Jogos de azar endividam brasileiros: chegada de “bets” e cassinos será problema político para 2026?

ADRIANO BARCELOS

Estamos no ano de 1946. O Brasil vive a euforia do pós-guerra, com a vitória dos Aliados e o país experimentando taxas de crescimento surreais: o Produto Interno Bruto saltou 11.6%, a indústria avançou asiáticos 18.5%. Enquanto a Europa juntava tijolos amontoados em suas cidades bombardeadas, os Estados Unidos em primeiro lugar, e o Brasil subsidiariamente, viviam a bonança econômica — e um certo boom cultural. A figura de Carmen Miranda, artificialmente construída na América do Norte, fazia o mundo sonhar com uma terra idílica onde os coqueiros balançavam com o vento e o mar quente a todos massageava com suas ondas cálidas. Essa cultura “brasileira pra gringo ver” tinha um epicentro: a capital federal, o Rio de Janeiro. E um palco: o Cassino da Urca, no pé da pedra, lugar de jogatinas elegantes e dos grandes shows artísticos que embalavam suspiros por vedetes ao mesmo tempo que faziam o pano de fundo para milhares de dólares que trocavam de mão, todas as noites, nas mesas de black jack, baccarat ou roleta.

A algaravia dos crupiês e o urro dos apostadores bem-sucedidos, porém, não era música para todos os ouvidos. Em um belo dia deste ano de 1946, uma primeira-dama carola daria fim à festa: “Dona Santinha”, ou Carmela Dutra, esposa do então presidente Eurico Gaspar Dutra, agastou o marido até que a zueira se encerrasse. Com uma canetada, impulsada pela mulher, Dutra deu o tiro de morte nos cassinos. Eram mais de 70 e empregavam pelo menos 60 mil pessoas em todo país.

Marginalização do jogo levou grupos marginais a explorá-lo

As consequências da medida, assentada na moral conservadora de Dona Santinha, que morreria no ano seguinte, não se encerram nos empregos que foram embora e nas casas de shows que silenciaram. A marca da relação do brasileiro com o jogo de azar passou da anátema no discurso público à promiscuidade na vida real. Enfim, a hipocrisia. O brasileiro ama apostar e a clandestinidade acolheu os jogadores de braços abertos. A capital federal coruscante dos cassinos era agora a do submundo do jogo do bicho. O Rio forjado pelos bicheiros, mafioso e violento, em parte eclodiu da marginalização das apostas.

Não é necessário nem dizer que o mundo evoluiu. As pulsões do progresso de hoje, porém, não fogem das motivações de antigamente: gerar expectativa e prazer e fazer com que o dinheiro circule, de forma a se apropriar de uma parte. As apostas esportivas, uma coqueluche britânica que remonta desde, pelo menos, 1780, chegaram ao Brasil apenas nos últimos cinco anos. As “bets”, casas de apostas eletrônicas sediadas fora do país, tomaram o futebol brasileiro de assalto. Estão nos influencers, estão nas camisetas dos times, estão nas placas de publicidade dos estádios e estão no próprio campeonato, o infame “Brasileirão Betano”.

A velocidade da política não é a dos gigabytes que passeiam pela internet tentando projetar quantos escanteios o Leixões terá na partida contra o Alverca, pela segunda divisão de Portugal. A “Lei das Bets” só foi nascer nos últimos dias de 2023 e prevê a inscrição das empresas que queiram operar no país, taxando as apostas e estabelecendo, entre outros pontos, campanhas de conscientização contra os riscos do vício em jogos de azar.  A lei foi sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva principalmente porque não havia o que fazer. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, em sua perseguição ao superávit primário, também acha muito bom ter mais dinheiro para entrar.

Eventuais vantagens da jogatina podem ser precedidas por desvantagens

O problema é que a lei nem vige plenamente – neste momento, estamos na fase de inscrição e qualificação das casas de apostas – e as consequências nefastas à saúde e as finanças das pessoas que jogam já horrorizam profissionais de saúde pública, que podem entrar em colapso. Ou seja: ao fim e ao cabo, os supostos benefícios e a necessidade de trazer para legalidade algo que já está posto – a colonização das mentes por conta de casas de jogo que atuam desde o exterior – podem ser ínfimos diante do buraco sem fundo do vício, visto que a possibilidade de jogar a partir de qualquer lugar chegou antes da consciência dos riscos à saúde e às finanças de cada família.

Outra questão que envolve o governo e que terá impactos em 2026 é que as apostas estão esgotando o orçamento dos lares. Esse dinheiro, em parte, está evadindo do país e, em outra parte, deixando de ir para outras destinações que garantem a estabilidade do setor produtivo e a organização da economia. Em 2023, as apostas eletrônicas sugaram surreais R$ 23,8 bilhões dos brasileiros.

Na escala de riscos ao país, as casas de apostas e os cassinos ocupam lugares distintos. Tanto é que as leis que tratam de um e de outro são diferentes e estão em estágios diversos de maturação. A que se refere às casas de apostas está em implantação, como vimos antes. Já a dos cassinos – e dos bingos e do jogo do bicho, subsidiariamente –, que tramitou na Câmara dos Deputados em 2022, recém passou pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado, tendo ainda que ser apreciada no plenário da Câmara Alta antes de ir à sanção.

Os cassinos, embora enquadrados na mesma categoria dos jogos de azar, têm um retorno social previsto melhor que as casas de apostas, acessíveis em qualquer smartphone. Assim como nos Estados Unidos – ou mesmo no vizinho Uruguai –, os cassinos têm potencial de revitalizar regiões inteiras e gerar novos pontos de interesse turístico. Há cálculos para todos os gostos, mas estima-se que cassinos e bingos possam gerar no Brasil mais de 1,5 milhão de postos de trabalho.

Pacto no tema esvazia debate: questão será rediscutida no futuro

Sai o tapete verde das mesas de carteados, entra o tapete verde do plenário do Congresso Nacional. Em Brasília, a dimensão da jogatina para o país e a incapacidade de resistir à pressão social provocaram um status político raro: a discussão sobre cassinos e “bets” rasgou a polarização. A Bancada da Bíblia, tão temida, nesse ponto, ou aderiu ou não teve forças para derrubar as bancas e os apostadores. Os bolsonaristas, sempre ansiosos por jogar sobre Lula e o PT a pecha de “devassos”, no que se refere à jogatina, calaram. Fato é que, proporcionalmente, assuntos bem menos importantes já fizeram mais barulho. E isso não é resultado do acaso.

A questão do jogo de azar, diante do que se vê em Brasília, é hoje fruto de um pacto tácito em que direita, esquerda e centro agem como se a polêmica não existisse. Em 2026 e logo após, Lula contará o dinheiro dos impostos, a oposição não dará um pio e o centrão tentará faturar em cada cidade que vier a receber cassinos e bingos Brasil afora.  Se o problema de saúde pública confirmar as previsões catastrofistas e o vício em jogo provocar o prometido caos social, talvez as apostas sejam uma questão político-eleitoral em 2030, ou seja, tarde demais.

Neste país, como acontece em vários aspectos da vida cotidiana, a tecnologia chega às pessoas antes da educação e da conscientização de que a banca paga e recebe; porém, ela necessariamente recebe muito mais do que paga, senão obviamente quebraria.

Não é que a Dona Santinha tenha razão, mas…

Deixe um comentário