
ADRIANO BARCELOS
A esquerda brasileira vive dias de ressaca. Sem temer eventuais exageros, talvez um portal histórico iniciado na luta pela anistia, no movimento “Diretas Já”, dos tempos dos “cabelos pretos, bandeiras vermelhas”, como na Barafunda de Chico Buarque, tenha se fechado diante de nossos olhos na sexta-feira – véspera do feriado da Independência. Como em um evento trágico qualquer que mereça letras garrafais em jornais, um misto de perplexidade, negação e incredulidade envolveu a demissão do Silvio Almeida do Ministério dos Direitos Humanos.
A esquerda mais profunda e histórica, que empunhou as tais bandeiras vermelhas desde tempos em que Lula ainda era apenas uma utopia, já se acostumou com as diatribes do poder. Engolir uma foto com Paulo Maluf no café da manhã, uma parceria com Geddel Vieira Lima no almoço – quem sabe um afago no Juscelino Filho no jantar? Enfim, “o jogo do poder” ou a “necessidade de manter a coalizão”, todos esses fatores foram, mais ou menos, normalizados na esquerda neste século.
Episódio expõe sentimento de traição e põe indagação sobre futuro da esquerda
Houve, ou havia, porém, algo como uma “reserva ideológica”. Certos quadros políticos, mesmo que em ministérios de orçamentos minúsculos, sempre deram ao lado vermelho uma impressão de que todo esforço vale a pena se, ao menos, “alguma semente for plantada”.
Da tal plantação, a semente mais vicejante talvez tenha sido Silvio Almeida. Homem de clareza de ideias absurda e retórica impecável, Almeida é uma liderança rara em um país racista. Negro, combina representatividade com reconhecida competência acadêmica, em uma altivez que fazia muitos sonharem em vê-lo no Supremo Tribunal Federal (STF) – ou até, por quê não, no Palácio do Planalto.
Na sexta-feira, diante de um país pasmado, Silvio Almeida deixou de respirar politicamente. No emaranhado de suspeitas frágeis que a imprensa cavoucava, notas oficiais evasivas mas reiteradas, foi-se formando ao passar das horas a convicção de que sim, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva demitiria o ministro por suspeitas de abuso sexual em série contra diversas mulheres.
Proatividade de Lula no caso indica que decisão não foi tomada de afogadilho
Não precisa ser muito inteligente para admitir que seria no mínimo improvável que todas tivessem se combinado para mentir, até porque foram surgindo relatos de locais diferentes, em momentos diversos e que indicam a suspeita de que o intelectual negro mais reluzente produzido no país em muitos anos era um abusador – ressalvada, claro, a presunção de inocência e o devido processo legal que poderá vir a absolvê-lo: embora o rito da política seja, nesses casos, bastante mais célere e severo que o da Justiça.
Em Brasília, há a convicção de que Lula sabia, e sabe, muito mais sobre o caso de Silvio Almeida do que a grande mídia supõe. A agilidade com que Lula se desfez de Almeida, se comparado ao “eterno benefício da dúvida” que ele concede ao próprio Juscelino Filho, lembrado alguns parágrafos atrás, deixa claro que o Planalto dispõe das certezas necessárias.
Os perfis de esquerda nas redes sociais se dividiram desde então entre lágrimas, lamentos, frustração e relatos genéricos de que “parece que morreu alguém da família”, “voltamos no tempo” ou que “estão todos de luto”. E estão mesmo. Almeida era um raro exemplo de pessoa que carrega consigo uma ideia. Seu discurso de posse em que listava grupos sociais discriminados e os enumerava com a seguinte frase: “vocês existem, vocês são importantes para nós”, entrou instantaneamente no panteão da História como um dos mais tocantes textos já proferidos em Brasília.
Extrema-direita obteve boa notícia de ministério onde expectativa era de brilho do PT
O peso da morte política de Almeida equivale às expectativas da esquerda depositadas sobre ele. Muitos lembraram que a suspensão do Twitter (X) foi uma boa notícia por esses dias, afinal o agora ex-ministro contava com um ódio de parte dos bolsonaristas proporcional à admiração do campo progressista e isso não passaria em branco na rede, como não passou em todos os demais espaços da internet.
Fato é que o episódio de Almeida provoca desalento na esquerda, talvez em um nível que o próprio Lula ainda não saiba mensurar. Lula fez o que precisava ser feito diante das contingências políticas, mas a eleição de 2026 será dura e a mobilização ideológica da esquerda como força eleitoral é algo que não se pode desprezar. A saída do ministro, seja como for, enfraquece a mobilização e oferece a impressão de que talvez não valha a pena acreditar em ninguém.
Movimento negro pode minimizar Silvio Almeida, mas ele rompeu bolha intransponível
A primeira reação do movimento negro foi dar de ombros para Almeida, mas construir um novo prócer com essa embocadura é tarefa para 20, talvez 30 anos. Para afastar riscos de um novo escândalo sexual, muito provavelmente teremos uma nova ministra – no momento em que traço estas linhas, fala-se em Nilma Lino Gomes e Macaé Evaristo.
O campo progressista está com gosto de cabo de guarda-chuva na boca, o ex-presidente Jair Bolsonaro tripudia (desde a quinta-feira, tem se referido a Almeida como “taradão da Esplanada”). O dano psicológico e suas consequências eleitorais na esquerda ainda precisarão ser calculados.
Mas eles existem. E são importantes.