
ADRIANO BARCELOS
Quem decidiu dormir cedo na noite de domingo talvez tenha perdido o momento já mais célebre das eleições municipais de 2024: sim, para orgulho de ninguém, mas para talvez repor algo em seu lugar (pela via mais baixa), uma cadeirada, uma agressão de José Luiz Datena (PSDB) a Pablo Marçal (PRTB) durante o debate dos candidatos a prefeito de São Paulo na TV Cultura tem potencial de mudar os destinos da maior cidade da América do Sul.
Para quem não viu a cena ou não está familiarizado com as eleições de São Paulo em 2024, Marçal, um coach suspeito de envolvimento com um grupo criminoso e alvo de investigação por desviar dinheiro de bancos, encarna o outsider boquirroto. Confundindo o eleitor que valoriza autenticidade, ele ofende adversários e achincalha o próprio jogo democrático – o que não faz sentido algum, pois seria o equivalente a fazer uma entrevista de emprego e enxovalhar a empresa e o processo seletivo todo o tempo. E ainda assim ser o escolhido.
No outro lado do corner, ou da cadeira, o apresentador de programas policialescos Datena. Reconhecido por sempre desistir de suas candidaturas antes das eleições, desta vez ele optou por fazer diferente e ir até o final – ainda que com uma campanha reconhecidamente apática e carente de energia, o que torna ainda mais irônico o episódio da cadeirada.
Desinteresse do eleitor pela política abre flanco para falso entretenimento
Fato é que São Paulo já perdeu. A entrada de Marçal e sua surpreendente ascensão deixa claro que os problemas da cidade – e são muitos – não estão no radar dos candidatos e, vamos falar sinceramente, nem do eleitor. Narcotizado pelas redes sociais, os votantes do começo de outubro estão mais interessados em entretenimento, venha de onde vier.
E se a inesperada diversão vier da política, o que fazer? Pois bem, como se São Paulo fosse uma imensa quadra de futebol de sabão, Marçal montou sua equipe de cortes de internet e, lacrada após lacrada, foi arregimentando sua trupe. Não é do jogo, mas é o jogo.
Em “Como as democracias morrem”, os escritores americanos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt mencionam que, historicamente, as democracias produzem barreiras naturais que as protegem de personagens como Marçal. Uma delas, talvez a mais forte, seria os partidos políticos. Mas a profusão de legendas no Brasil deixa claro que não convém esperar demais da sigla do famoso patrono do aerotrem.
A própria indicação de Marçal foi contestada dentro do PRTB, o que não significa muita coisa. A evolução de personagens nesse estilo evidencia que a democracia não possui anticorpos contra aqueles que a corroem por dentro. Os candidatos antissistema e que dele se utilizam ainda vão causar muito estrago para as democracias representativas – se é que elas existirão num horizonte mediano de tempo.
Cadeirada trouxe alívio para Bolsonaro e Lula
Em uma análise mais profunda, direita e esquerda respiram aliviadas com a cadeirada. O ex-presidente Jair Bolsonaro teme Marçal. Afinal, o coach é um tipo político com o qual ele ainda não aprendeu a lidar. É uma ameaça velada, afinal ficou provado na parada da extrema-direita no 7 de setembro, na avenida Paulista, que Marçal já é uma espécie de câncer que consome por dentro o seu próprio eleitorado. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, visto como relativamente deslocado do atual jogo político das redes sociais, igualmente não teria condições de combater a horda de lacradas a serviço de Marçal e sua fábrica de cortes de internet na velocidade da luz. Melhor antagonizar com Bolsonaro.
E a eleição de São Paulo, como fica? Bom, chega a ser irônico que Marçal tenha sido encurralado de acordo com as regras de seu próprio jogo. Mais ironicamente ainda, logo ele, suspeito de participação em uma quadrilha que lesa idosos, acabou atingido por um idoso.
Por mais que seja constrangedor estabelecer um paralelo pela lógica da quinta série, a narrativa vencedora do episódio da cadeirada é a de que o mentor de todo o bullying da escola recebeu na saída a surra que merece. E quanto a isso não há argumentos.
Marçal, que dificilmente erra, desta vez errou: a estratégia de se vitimizar diante de uma cadeirada de um senhor de 67 anos é patética e deprimente – e já está sendo devidamente punida no tribunal das redes sociais.
Como acontece sempre com Russomano, talvez Marçal já tivesse começado a descida
Agências de análise de tráfego já haviam detectado uma queda no interesse por Marçal na internet antes da cadeirada. Como bem menciona o jornalista Euclides Bitelo, que também já colaborou neste espaço de debates do Stump Análise, o paulistano é ávido por novidade. Mas, em algum momento, ele iria passar pelo efeito paleta mexicana: ao fim e ao cabo, era apenas um picolé custando mais caro do que valia. Pesquisas de opinião da semana passada foram inconclusivas. De cenários em que Marçal está em primeiro a outros, em que figura até em terceiro, não é possível saber de fato o atual estado de humores do paulistano. Mas, se vale a impressão das ruas, Marçal parece ter começado a desinflar. E o episódio da cadeirada tende a reforçar o esvaziamento.
A democracia brasileira, pobre coitada, segue trôpega e cheia de ameaças. Ela, porém, acordou sorridente a segunda-feira. Deve ter sorrido ao amanhecer, sob as cobertas, com seu rosto de efígie, e pensado: “nossa, onde viemos parar, uma cadeirada… hihihi”. Mas, é o que temos para o momento. Enquanto não chegam os tais dias melhores.