Profissão? Rico: na sociedade da distração, a “mão invisível” do mercado puxa suas cartas da manga

EUCLIDES BITELO

Visto pelos olhos do século XXI, Adam Smith (1723 – 1790), em seu clássico A Riqueza das Nações (1776), soa inocente, talvez até mesmo ingênuo, em sua defesa irrestrita do individualismo e do liberalismo, algo que pode ser resumido na tão falada, e tão pouco compreendida, “mão invisível” do mercado.

Porém, se nos deslocarmos temporalmente, podemos entender que era o início da Revolução Industrial, iniciada por volta de 1760, então assistir aquele ambiente de inovações, novas ideias, de avanços científicos, deveria ser realmente algo impressionante para quem ainda vivia sob o jugo de monarquias absolutistas e do moralismo religioso absoluto.

Não quero discutir aqui o que o senhor “Carlinhos Marques” fez com esse otimismo exagerado ao lançar O Capital (1867), quase 100 anos depois, onde analisou o caráter exploratório da burguesia sobre os trabalhadores, mas dar um salto histórico até o neoliberalismo e como isso é interpretado nos dias atuais.

Se no liberalismo clássico existia um certo deslumbre pela figura do industrial inovador, aquele que através de uma ideia ou do financiamento de pessoas capazes de realizar novidades para facilitar a vida das pessoas, e assim movimentar a economia e o capitalismo, o neoliberalismo criou a rachadura no sistema.

Desconexão entre realização, notoriedade e celebridade avilta capitalismo clássico

Essa fissura tem o nome de financismo, ou seja, não era preciso mais realizar algo extraordinário, bastava ter dinheiro. Não quero aqui resumir, ou enxovalhar (tá, só um pouquinho), as ideias de economistas como Friedrich Hayek ou Milton Friedman, mas tentar entender o que deu errado e o que se seguiu a esse fracasso ainda não admitido pelos Faria Limers e congêneres.

Os teóricos neoliberais pregavam uma denominada “terceira via”, capaz de resolver o conflito entre o liberalismo clássico e a economia planificada coletivista com o objetivo de evitar crises como a de 1929. A crise do subprime, iniciada em 2007 mas com efeitos devastadores a partir de 2008, e até hoje não resolvida, e a crise climática causada pelo sistema de acumulação capitalista nos mostram o quanto mudanças são necessárias.

Mas como é mais fácil a extinção da humanidade do que nossas elites admitirem que há algo errado e que os sistemas econômicos, de produção e acumulação devem mudar, soluções simplistas e enganosas surgem para atrair a atenção e vender esperanças para a população, cada dia mais desalentada e em busca de uma saída do buraco.

Com isso surgem os espertalhões vendedores de fumaça. Religiões, coachs, bets, políticos que pregam a perda de direitos em nome de mais ganhos, endurecimento contra a “bandidagem” (desde que seja pobre, e preferencialmente preta), uma volta a um passado idílico e que nunca existiu, entre outras cascatas. Enfim, todas soluções simples, prometendo uma sociedade perfeita, com enriquecimento rápido e o mínimo de esforço. Algo que seduz gerações mais novas, e algumas mais velhas, que vivem o desespero e a desesperança do capitalismo em sua forma mais triste, global e ilusória.

Noção de sucesso financeiro dissociada do empreendedorismo desacredita sistema

Essa nova forma de capitalismo surge desse sistema onde a inovação é substituída pela figura que aparenta sucesso, o empreendedorismo é substituído pela picaretagem, criar algo novo é menos importante do que ostentar marcas e breguices mil, desde que sejam caras. Muito caras. Em uma sociedade da imagem e da atenção, figuras como os Marçais e Deolanes reinam absolutos. Ninguém sabe dizer exatamente o que eles fazem, mas mesmo assim vendem sucesso e uma ideia que isso está acessível a todos, que basta querer, rezar, amar e jogar no tigrinho para conseguir.

Não que isso seja algo novo. Pessoas com mais experiência como eu (eufemismo para velhice), lembram que em algum momento dos anos 1990 seu pai ou sua mãe foram abordados por alguém com promessas de riquezas através da AmWay e outras pirâmides financeiras. Esse estelionato comercial se vendia como um clube de serviços, e prometia mais do que ganhos, mas uma comunidade que havia descoberto a “grande verdade”, onde todos ganham vivendo à margem do mercado, da economia e da política tradicional, que existia apenas para que você perdesse dinheiro.

O papo era evangelizador, e precisava de pessoas que realmente acreditassem naquilo. Qualquer semelhança com os Q-Anons, seguidores de coachs, de igrejas e pseudo-ciências, que hoje se confundem em um único sistema mental: de que você é um escolhido e que pertence a um grupo muito pequeno e detentor da verdade – não é mera coincidência.

Em um mundo cada dia mais virtual e com pessoas cada vez mais oprimidas, endividadas e em busca de uma escapada rápida para seus problemas pessoais e financeiros, vivendo dentro de padrões gameficados e infantilizados, não é difícil entender o sucesso das loterias online, por exemplo. Mas isso também explica o sucesso desses influenciadores, que não vende produtos e serviços, mas um “estilo de vida”, o que é muito poderoso nesse ambiente onde o espaço público vem sendo devorado cada dia mais pelo espírito de comunidade, onde ao invés de construir o seu próprio caminho, você paga uma assinatura, uma mensalidade, para que alguém diga a vida que você deve viver para ser feliz.

No cenário brasileiro, trabalho duro nunca rendeu prestígio. Ao contrário.

Chega a parecer irônico, pois o sucesso individual depende de um sistema pronto, mágico, muitas vezes binário. Basicamente, uma catarse coletiva onde o símbolo de adoração é o dinheiro, pois mesmo que seu objetivo seja largar tudo e viver uma vida simples, meditando nas montanhas do Tibet, você precisa conquistar alguns milhões. E para isso vale tudo! Como profetizou o rapper 50 Cent em seu disco de 2003: “Get Rich or Die Tryin (Fique rico ou morra tentando)”.

Lembra que iniciei esse texto citando a fé que Adam Smith tinha nos burgueses, que nada mais eram que os empresários, dos séculos XVI e XVII? Pois, a explicação sobre os dias atuais pode estar na transformação daquilo que consideramos “o vencedor”. Se antes tínhamos uma imagem que o empresário era alguém com uma inteligência superior, capaz de arriscar o seu capital em nome de uma ideia, de um produto, de um serviço, hoje a regra é clara, ou você é “malandro” ou você é “mané”, parafraseando a música que ficou famosa na voz de Bezerra da Silva.

A partir daí podemos chegar à triste conclusão que estamos deixando para trás a era do conhecimento, pós Idade Média (Século V – Século XV), para uma volta ao solipsismo, onde passamos a viver apenas o espaço presente a partir das nossas sensações e crenças. E se a ansiedade sobre o tempo nos faz falar menos sobre o futuro, a vida nos ensina que essa idealização de sucesso é apenas um rascunho, um ensaio para um show do qual a maioria nunca vai participar no sistema capitalista. E como esse idealismo e desespero chegaram à política institucional, só podemos pedir que Deus, ou alguém, tenha piedade desta Nação.

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