Lula sequer esperou o segundo turno das municipais para reposicionar governo: guinada à direita à vista?

15.10.2024 – Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante a sanção do Projeto de Lei n° 3090/ 2023, que institui o Dia Nacional da Música Gospel, em cerimônia no Palácio do Planalto. Brasília – DF.
Foto: Ricardo Stuckert / PR

ADRIANO BARCELOS

Para o Palácio da Alvorada, não há mais o que esperar. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva já entendeu o recado das urnas nas eleições municipais de 2024 – e ele é amargo como fel. A esquerda perdeu. Mas a pior notícia nem é ter perdido prefeituras, até porque isso tem sido uma indesejável constante na vida do PT desde 2016. A verdadeira hecatombe foi o descolamento de discurso entre a esquerda e as classes de renda mais baixas.

A eleição municipal de São Paulo, por exemplo, que terá um segundo turno entre Ricardo Nunes (MDB), apoiado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, e o deputado federal Guilherme Boulos (PSOL), apoiado por Lula, ficou marcada pela prevalência de Nunes junto às faixas de eleitorado mais populares. Mesmo com Marta Suplicy (PT) de vice, em um arranjo considerado infalível e montado pelo próprio Lula, Boulos não emplacou junto às periferias – ainda que Lula tenha sido o mais votado dos candidatos a presidente na cidade de São Paulo.

Lula é um animal político, uma espécie cada vez mais rara. E o desarranjo da relação entre as esquerdas e o país era algo que pairava no ar havia mais de um ano. Senão, vejamos: o governo coleciona boas notícias na economia, a renda média dos assalariados sobe, o PIB cresce e o desemprego está no patamar mais baixo da história recente.

Ainda assim, a avaliação do governo é medíocre – grosso modo, de cada três brasileiros, um está contente, um está descontente e um está indiferente. Diante disso, já ressoa na cabeça de Lula que vai “faltar pernas” em 2026 e é melhor reacomodar o discurso para tentar a sorte diante de um eleitor que não percebe o governo e nem as esquerdas como representantes de seus anseios.

Os movimentos de Lula para reposicionar as suas peças já estão em curso. Menos distraídos perceberam a cerimônia estranhíssima em que o presidente recebeu o deputado federal ex-bolsonarista Otoni de Paula (MDB-RJ) e evangélicos no Palácio do Planalto. O atalho para o PT se viabilizar em 2026 pode estar na eleição de Cuiabá em 2024, quando o petista Ludio Cabral faz um bom enfrentamento contra o candidato de extrema-direita Abilio Brunini apenas negando a “pauta moral”, mas isso é um passo arriscado e que precisaria ser amadurecido por Lula.

A escolha do próximo presidente do PT também entra no radar: Lula quer o prefeito de Araraquara, Edinho Silva, mas movimentos internos petistas trabalham por outros nomes mais à feição da atual presidente, Gleisi Hoffmann, e isso desagrada o Planalto. Talvez Edinho desse a autonomia para Lula reposicionar o PT que Gleisi não daria, e isso é uma peça do tabuleiro de 2026 da qual Lula não quer abrir mão .

Na eleição de São Paulo, outro fator indica o caminho de mudança que Lula poderá percorrer: a “marçalização” do discurso de Boulos na reta final, com a carta atabalhoada que ele leu para seguidores em que se compromete com os empreendedores individuais, em especial os motoristas de aplicativos e motoboys, evidencia que a fração de brasileiros que não querem saber de carteira assinada, até que enfim, vai entrar no radar da esquerda.

Expressões como “pobre de direita”, “precarizado” e “empreendedor de bolo de caneca”, devem ser varridas do vocabulário daqui até as próximas eleições. E isso é uma resolução deveras tardia: desde 2017, com a pesquisa “Percepções e valores políticos nas periferias de São Paulo”, um trabalho primoroso da Fundação Perseu Abramo, ligada ao próprio PT, o estado de coisas já indicava que o trabalhador periférico já não era mais o mesmo dos tempos do Lula metalúrgico.

Onde vai parar o reposicionamento de Lula e do PT é difícil determinar agora. A cantilena pró-empreendedorismo, a defesa da meritocracia e até a injeção de recursos públicos em projetos antes vistos como “liberais” são passos já vistos como certos. A picanha barata com cerveja não produziu o efeito esperado por Lula. O eleitor, errático, acha que a prosperidade precisa vir com a velocidade das bets e do “jogo do Tigrinho”, do Day Trade e como resposta automática à ansiedade com que ele rola o feed de suas redes sociais em busca do influenciador favorito. A vida não rola no mesmo ritmo das dancinhas do TikTok, isso é fato – mas não adianta culpar o eleitor.

Reforma ministerial ao sabor do primeiro governo Lula está no radar

Outra consequência, essa mais direta, também está no horizonte dos analistas: uma reforma ministerial com um pezinho mais à direita. Na Frente Ampla que o elegeu, Lula ampliou o número de pastas, mas manteve sob seu domínio e do PT as principais. Há um certo consenso em Brasília que muitas desses ministérios não funcionam bem, ou seja: nem o governo os utiliza para fortalecer o apoio do Congresso e nem faz as entregas que poderiam ampliar a popularidade de Lula. Um exemplo claro: o Planalto colocou Nísia Trindade no Ministério da Saúde, o maior orçamento da Esplanada. Nome técnico, vinculado à esquerda.

O Centrão, especialmente o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP), sempre cobiçou o espaço, mas não obteve a pasta. O resultado é que a gestão de Nísia é, no momento, fraca – para se definir em palavras bem simpáticas. O governo tem passado por desgastes na Saúde, um deles bastante grave: a falta de vacinas para Covid no Sistema Único de Saúde (SUS). Dessa maneira, não se pode desconsiderar as possibilidades de que Lula entregue nacos mais suculentos de seu governo na reta final para aumentar sua força dentro dos partidos de centro. Mesmo dentro da esquerda, é esperado um reposicionamento que pode empurrar o PT para um isolamento quase irresistível. O PSB e o PDT ensaiam uma federação, com outros pequenos partidos de centro, um movimento que mexe consistentemente no jogo de cartas para 2026 e adiante.

Lula já passou por outras crises antes. O mensalão, em 2005, obrigara o PT a fazer concessões. Lula as fez e teve uma reeleição absolutamente tranquila em 2006. O ponto é que Lula não é mais o mesmo, o PT não é mais o mesmo e o eleitor – definitivamente – não é mais o mesmo.

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