
ADRIANO BARCELOS
O Século XXI trouxe à luz alguns debates que pareciam totalmente superados. Um deles, o da primazia da lei e do Direito sobre a vontade popular. Um exemplo, para ficarmos todos na mesma página: questões sobre a pena de morte dificilmente seriam objeto de plebiscitos ou referendos nas sociedades desenvolvidas – não porque não haja gente o suficiente para achar que o Estado deve matar pessoas e votar a favor disso; mas porque é moralmente errado que o Estado mate pessoas, pelo menos na parte do mundo que já caminhou um pouco adiante do Iluminismo.
A ideia de que o apoio popular tudo permite precisa de contenção, ao menos nas democracias. Não é possível conciliar o entendimento universal de que todos são iguais com a premissa de que a alguns tudo é permitido, desde que tenham a aprovação dos demais.
Ao questionar a autoridade de um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) baseado na pergunta sobre “quantos votos ele obteve para estar lá”, o oportunismo politiqueiro estabelece a primazia do populismo mais raso, como se República moderna permitisse um arranjo onde apenas a resposta da turba organizada oferecesse legitimidade. Não é assim – e nem pode ser assim. A extrema-direita subverte conceitos construídos ao longo de séculos, como se retirasse as colunas térreas de um prédio de 20 andares, não na expectativa manifesta de derrubá-lo, mas no objetivo final de vê-lo no chão.
A pergunta capciosa e que sequestra mentes pouco inteligentes no Brasil hoje é: o que conta mais, a opinião de 11 ministros do STF ou a vontade de 50 milhões de pessoas? Pois bem. A vitória de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos da América, condenado por fraude, traz uma resposta significativa sobre a preponderância do populismo em relação ao Estado de Direito – isso vindo do país que se autoproclama “líder do mundo livre”. As ideias liberais dos Founding Fathers, tão preocupadas em coibir “tiranos”, foram suplantadas no Século XXI pelo barulho das multidões empanturradas de cachorro quente e refrigerante. É a democracia? Não, não é a democracia. Isso é outra coisa. Mas não falaremos de Estados Unidos agora.
O ex-presidente Jair Bolsonaro está inelegível, é o que dizem. As acusações contra ele, inclusive, estão sendo robustecidas em vários dos inquéritos, o que sugeriria que a inelegibilidade poderia, até mesmo, vir acompanhada de medidas mais drásticas, como a prisão.
Mas a vitória de Trump muda o sentido do vento. Bolsonaro esteve acuado, foi acossado pela língua ferina de Pablo Marçal e virou tira-gosto nos discursos de Ronaldo Caiado. Nada que o eliminasse politicamente. No instante em que Brasília vive o exato momento da troca no presidente da Câmara dos Deputados e do Senado, o assunto da eleição parlamentar será uma anistia geral e irrestrita aos golpistas de 8 de janeiro de 2023, como já vem sendo ventilado.
O deputado Hugo Motta (REP-PB), que tem o apoio de Arthur Lira, do PT e do PL, já vem sendo pressionado para pautar a anistia por parte do PL. Em tese, para não perder o apoio do PT, ele se esquivará do assunto até a eleição. Mas na verdade, ele pautará sim a anistia no ano que vem, por várias razões. Uma delas, que ninguém nos ouça: o presidente Luiz Inácio Lula da Silva gosta da ideia de enfrentar Bolsonaro outra vez em 2026, na tentativa de fazer dele seu adversário amestrado, como fez com o PSDB há 20 anos. A opinião pública está amaciada, afinal, quem não se compadece vendo a vovó Fátima de Tubarão condenada a 17 anos de prisão?
O Congresso Nacional já pôs o bode na sala: ao pautar medidas restritivas à atuação do STF, o parlamento impôs constrangimento à Justiça. A vergonha alheia pode ser grande (o Supremo julgando inconstitucionais medidas que restringem o seu próprio poder), mas talvez uma medida compensatória repondo Bolsonaro de volta ao jogo político possa ser a conciliação de que a extrema direita necessita para tentar fazer de Bolsonaro em 2026 o Trump de 2024.
A tempestade de Trump (não fazer piada com Stormy Daniels, a atriz pornô subornada por ele levando-o à condenação e cujo apelido em tradução livre seria “tempestade” Daniels) vai sair com “nível cinco” dos EUA e vai chegar aqui com nível três, talvez quatro, na escala dos furacões que varrem a Flórida. A democracia brasileira será sacudida mais uma vez e o beneficiário será Jair Bolsonaro. O vento vai balançar tudo na Praça dos Três Poderes e a extrema-direita acordou sorridente. Não quer dizer que ele vá vencer em 2026 – não quer dizer sequer que ele conseguirá ser candidato, visto que dois anos de ostracismo forçado assanharam outros nomes do seu campo político. Mas.
Afinal, o que podem a razão e a verdade diante da opinião (ainda que obtusa) de 50 milhões de pessoas?