Uma verdade inconveniente no Jornalismo? Aí vai: a obsessão pela falsa simetria é mais criminosa que a parcialidade

ADRIANO BARCELOS

Do alto de meus 46 anos, já posso começar a me entender por aquilo que se considera um dinossauro do Jornalismo: comecei a faculdade no século passado, vi a internet usando fraldas e meus sonhos profissionais da época de universitário provocariam risos nos jovens das “FACs” de hoje em dia. Porém, alguns ensinamentos dos professores da antiga Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação (FABICO) da gloriosa Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) deveriam valer – ou seguir valendo – por motivo de: nada melhor foi criado, a ponto de revogar o que valia naquela franja de 1999.

O primeiro que me vem à mente não é nada de tão elaborado, mas é um imperativo moral da profissão: pra ser jornalista é mandatório ter coragem. “Tener huevos”, se diría, no nosso portunhol castiço daqueles dias em uma Porto Alegre mais vermelhinha, ainda iludida com o Mercosul. Havia até uma frase-síntese desse pensamento, creio que vinda da cabeça inquieta do professor Wladimir Ungaretti: “o jornalista é o único profissional que luta todo dia contra seu próprio emprego”. Ora, vejam a genialidade dessa frase: jornalista é algo como um profissional liberal, cuja autonomia e independência são importantes para fazer seu trabalho; por outro lado, ele precisa(va) estar associado a uma empresa de grande porte, que possuísse gráficas, estúdios de rádio – os meios de produção, em suma, em uma visão marxista de mundo.

Então, todos os dramas existenciais do jornalista noventista estavam expressos na dicotomia entre ser honesto para com a sociedade, em última análise a razão de ser de seus serviços, e para com o empregador, que demanda certo desempenho e busca seu lucro até onde for possível estendê-lo, afinal de contas todo mundo tem direito a seu Porsche ou mansão em Punta Del Este.

Divagações lateralizadas à parte, ao jornalista não pode sobrar medo de quem quer que seja, nem do poder, nem do empregador, nem da própria sociedade: “Jornalismo é publicar o que não querem ver publicado, o resto é publicidade”, o adágio de autor desconhecido, tão bem sintetizado por Millôr Fernandes: “Jornalismo é oposição, o resto é secos e molhados”.

Das tardes frias dentro do prédio da FABICO para cá, quando o Jornalismo tinha mais a ver com o quarto dos peões do que com o balcão onde todo mundo vende hoje os seus secos e molhados, quase tudo mudou. Os meios de produção de Marx foram tirados das mãos das famílias ricas que sempre os tiveram e repassados a pequenas divindades globais, Musk, Zuckerberg, etc, etc, etc.

O jornalista inconveniente, que já havia sido despido de seu diploma, virou agora a insignificância de si próprio… O anódino “produtor de conteúdo”, aquele que divide a atenção do público enfastiado com vídeos de cachorro, coaches imberbes sentados em cadeiras-gamer e crianças que odeiam a CLT e falam com voz de pastor evangélico dando dicas matrimoniais do alto de seus 12 anos de experiência de vida.

Esse estado de coisas pressiona, tolhe e inibe. O jornalista que resolveu inexplicavelmente ficar dentro das redações, brincando de driblar o burnout e fazendo roleta-russa com os boletos, está sob constante tensionamento. Os “haters”, odiadores profissionais, se somam a todos os infortúnios do mundo ao patrocinar a execração pública do jornalista inconveniente. Chamar a vaia para si é para poucos: a natureza humana busca é pela validação. A turba policialesca das redes quer bater, matar e estrebuchar, expondo vísceras de respeitabilidade social em praça pública. Quem a isso não temeria?

Além de adoecer o jornalista, esse habitat radioativo provoca uma mudança significativa na prática do cotidiano da imprensa: a coragem se esvai. A ideia de que, por esse salário e em defesa dessa sociedade, talvez não valha a pena a luta anestesia o jornalista inconveniente. Melhor é “não se incomodar”. Como faço isso? Não desagradando ninguém. Ou melhor, se for desagradar a alguém, que sejam aqueles que têm menor potencial para me ferir ou fazer mal. A saber: me matar ou ainda pior… me demitir.

Como isso se manifesta na prática? É muito simples: como sabemos, estamos em um país polarizado. Há algo que um lado promova e que é reprovável. Isso é notícia. Mas como publicar, sem que o lado que faz algo errado se volte contra o jornalista? É simples: encontremos algo que possa ser dito e que imobilize também o outro lado.

A linguagem humana, porém, é carregada de subterfúgios e adjetivações de abrandamento. Exemplo esdrúxulo: se uma pessoa mata outra com cinco tiros e a outra passa o sinal vermelho e é multada, temos duas pessoas que infringiram a lei. Qual o perigo que essa psiqué das redações traz pra sociedade? Na verdade, o descritério já trouxe consequências e elas são todas nocivas, sem que ninguém perceba.

A busca exacerbada pela simetria incabível é uma praga no sentido de que, cada vez mais, favorece a narrativa de que todos são iguais, todos são infratores, ninguém vale nada. Não preciso nem comentar que os verdadeiros criminosos saem beneficiados – e os extremistas mais ainda. Se todos são iguais, não faz diferença. O candidato intragável de ontem é o palatável de hoje, afinal ele é ruim mas os demais também são. Afinal, ninguém presta.

O jornalista escravo das falsas simetrias é um cupim da informação. Ao contrário do parcial, o verme que desvia o curso do rio em que flui a notícia pra irrigar apenas sua lavoura, o jornalista da falsa simetria é um cínico. Ele usa todas as regras do jogo da confiança jornalista-audiência para sabotar o próprio jogo. Ele não mente, ele não omite. Ele é pior. Ele traz para o picadeiro quem devia ter ficado à sombra. Ele traz para o opaco todo aquele que deveria estar na luz para que o público pudesse construir a sua própria visão da realidade. Ele embaralha cartas. Como um mágico mequetrefe, o prazer dele é confundir.

As gerações formadas em comunicação pós-internet muito pouco podem fazer a respeito dessa composição. É difícil identificar um problema quando sua formação é turvada pelas lentes desse estado de coisas. Não se pode ver um problema mesmo evidente se ninguém mais o vê, ou se ele sempre esteve aí – e talvez sempre vá estar.

A erosão da democracia passou pelo escoadouro da credibilidade da imprensa. Existe algo pior que isso, pra quem se formou construindo notícia em defesa da sociedade e contra seu próprio emprego?

Não. E não há simetria que se sustente.

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